quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Governo francês condecora José António Falcão!

O arquitecto José António Falcão, director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja,  explica que o  “mais importante” da distinção é que ela constitui “um sinal de que aquilo que está a ser feito no Alentejo não passa despercebido às autoridades francesas”, que quiseram realçar “que o trabalho é relevante e deve ser continuado”, acentuou.“O aspeto mais delicado” da condecoração foi a recuperação do estudo de uma das “obras-primas da arte francesa”, ‘A Morte de Sardanápalo’, do pintor francês Eugène Delacroix (1798-1863), roubado em 1988 da Casa dos Patudos, em Alpiarça.“Com muita persistência conseguiu-se que essa e outras peças voltassem a Portugal”, explicou o especialista em património religioso, que trabalhou no museu entre 1993 e 1995 como conservador, e de 2003 a 2008 como diretor.A obra viria a ser recuperada pela polícia italiana em 1995, no interior de uma igreja abandonada de Milão, que servia de esconderijo para peças furtadas.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Fazer a diferença

A vocação do silêncio: José Luís Peixoto na Cartuxa de Évora
«Caminhava com o prior ao longo dos claustros quando os sinos começaram a tocar. A dissolverem-se no céu ou a retinirem nas paredes de pedra, chamavam para as vésperas e, longamente, acompanharam-nos até à entrada da igreja. A tarde dobrava o ponto em que o calor se transformava em calma, primavera de Deus. No interior da igreja, era fresco o eco da lonjura. Quase indistinto dos objectos e das imagens, imóvel, sentado, com o capuz a cobrir-lhe a cabeça, estava um monge velho, curvado. O prior apontou-me um lugar, fez-me gesto para esperar ali e saiu. O monge e eu ficámos a respirar. Foi então que o silêncio começou.
Calcular a passagem do tempo dentro do silêncio é comparável a contar segundos pela chama de uma vela ou por um abraço. Semelhante a estes dois exemplos, também o silêncio transporta um sentido imperturbável que é maior do que o tempo que pode ser medido. Como se acontecesse noutro lugar, como se ignorasse os minutos e, assim, lhes subtraísse toda a força da sua importância. O silêncio não se deixa transformar por horas, dias ou séculos. Aquilo que o silêncio era em 1084, quando São Bruno fundou a Ordem da Cartuxa, continua a ser, hoje, o silêncio.
Não sei quantos minutos passaram até começarem a chegar monges e o prior entre eles. Os passos no estrado de madeira, o som de encontrarem o seu lugar, de tirarem os livros enormes e de os abrirem. E ninguém dirigia a atenção para fora daquilo que estava a fazer, ninguém fazia um gesto desnecessário, ninguém procurava o olhar de ninguém. As vésperas são o último serviço litúrgico no dia de um monge cartuxo. O primeiro tem início à meia-noite e, na semiescuridão da capela, dura cerca de duas horas e meia. São as matinas. Dividem o sono dos cartuxos, que dormem entre as oito e trinta e um pouco antes da meia-noite, voltando depois a dormir entre as três e as seis e meia da manhã. Às oito, inicia-se a missa, que dura cerca de uma hora. Nesses três momentos diários, sem acompanhamento instrumental, apenas voz, os monges cartuxos cantam. Naquele fim de tarde, quando todos estavam prontos, quando chegou o instante, o prior começou a cantar. Era quinta-feira, cantaram-se os salmos das quintas-feiras, 138, 139 e 140. Em gregoriano, um dos lados da igreja cantava um verso, o outro lado da igreja respondia com o seguinte. Encostados a paredes opostas, virados uns para os outros, de cabeça baixa, coberta pelo capuz branco do hábito, com o rosto fixo nas páginas do livro, os monges cantavam em português. Na vibração das vozes, dentro da sua mistura colectiva, era possível distinguir-se os erres suaves do monge californiano e, noutras vezes, os erres mais rasgados dos monges espanhóis.
O Convento de Santa Maria Scala Coeli, em Évora, conhecido como Convento da Cartuza, único convento activo desta ordem em Portugal, é a casa de sete monges espanhóis, dois portugueses e um norte-americano. Além destes, o convento recebe um número variável de aspirantes. A língua comum é o português, que, neste caso, não é tanto uma língua de falar, mas é sobretudo uma língua de ler, de pensar ou, mais ainda, é uma língua de orar. A Cartuxa é uma ordem contemplativa: entre os seus princípios fundamentais encontram-se a oração, a clausura, o silêncio e a solidão.
 Scala Coeli significa “escada do céu”
E, realmente, é compreensível que, no tempo em que os textos sagrados se escreviam, tenha sido necessário o céu para simbolizar esse Deus omnipotente. À saída das vésperas, estava um céu imenso sobre o pátio do convento, era um céu de bondade. Os monges caminhavam e, um a um, iam entrando pelas portas baixas, distribuídas ao longo da distância dos claustros. O som breve, discreto, de cada porta a fechar-se. Os monges cartuxos passam a maior parte do dia na sua cela. Despida de tudo o que não seja devoto ou prático, cada cela é individual e constituída por uma primeira sala com lareira para acender no inverno e genuflexório, um pequeno escritório com secretária e cadeira, uma divisão de oração, um quarto com cama muito austera, catre com colchão de esponja, e um pátio quadrado de sol e plantas, com casa de banho ao fundo. As horas, os dias são preenchidas com oração e leitura. As refeições são servidas por uma janela e recolhidas desde o interior, através de um sistema pensado para evitar o contacto entre os dois lados. As leituras são escolhidas da biblioteca, onde a quase exclusividade dos livros são religiosos ou espirituais, com secções como Mariologia, Patrologia, Cristologia, Dogma, entre outras. Reparei nos títulos de alguns dos últimos livros consultados: “Ser Cristão Num Mundo Hostil”, “A Teologia da Doença”, “O envelhecimento”. Faz sentido que o envelhecimento seja um motivo de interesse na Cartuxa de Évora: quatro dos monges são octogenários, quatro são septuagenários, um está nos cinquentas e outro nos quarentas. Quanto aos aspirantes, mais jovens, até aos votos solenes, nunca é garantido que sigam a vocação cartuxa. Ao longo dos sete anos de preparação, incluindo postulantado, noviciado e votos temporários, os aspirantes têm liberdade de repensar a sua escolha e sair. O que acontece num grande número de exemplos.
Além da vida na cela, os monges tentam que o mosteiro se aproxime da auto-suficiência e, para tal, dedicam-se a diversos ofícios. Entre os cartuxos, há alfaiate, electricista, pedreiro, serralheiro, etc. Salta à vista a cuidada manutenção do mosteiro e um laranjal no pátio, que, nesta época, está carregado. O padre Isidoro não me deixou sair sem me entregar um saco cheio dessas laranjas. Algumas ainda estão ali, a olhar para mim. São doces. Mas aquilo que demove aspirantes, o sacrifício que torna a vida cartuxa tão específica é o seu carácter eremita. Até as escalas de trabalho são planeadas de modo a que cada monge desenvolva as suas tarefas sozinho, sem companhia. Com a excepção dos domingos e dos dias de festa, os monges cartuxos mantêm o silêncio total. Nessas datas, existe um período de recreio em que conversam, entre as três e as cinco da tarde. Essa é uma conversa colectiva, em que todos ouvem o que é dito. Os monges não aguardam essas horas com impaciência. Uma boa parte deles limita-se a ouvir e há mesmo alguns que podem escolher não participar, recolhendo-se à cela. É também nesses dias que o almoço é tomado em conjunto, simultâneo à leitura ininterrupto de um texto religioso, feita no centro do refeitório. A carne nunca faz parte da ementa dos cartuxos, apenas vegetais, peixe e lacticínios. As sextas são passadas a pão e água. Individualmente, os monges podem escolher fazer períodos de jejum, bastando para isso afixar uma tabuleta com a palavra “abstinência” na janela onde os tabuleiros das refeições são servidos.

Quando o clima permite, a clausura é amenizada por um passeio semanal pelos campos ou a um lugar próximo de interesse religioso ou histórico. Esse instante recreativo permite aos monges caminharem em grupos de dois e dá-lhes a oportunidade de falarem de si próprios. Além dessa ocasião, as raras saídas do convento restringem-se a idas ao médico. A clausura é um compromisso para toda a vida e implica, por exemplo, o sacrifício da família. No escritório, recordando, o padre Antão, prior da Cartuxa de Évora, contou-me que os seus pais, quando eram vivos, para aproveitarem a oportunidade, o visitavam separadamente, no aniversário de um e de outro, em Abril e em Outubro. Ao ouvi-lo, não consegui evitar dirigir o meu olhar na direcção do telefone, o único de todo o convento, o mesmo para onde tinha ligado várias vezes, tentando imaginar onde era atendido. Sei agora que era atendido numa divisão de paredes grossas, brancas, com uma secretária de madeira antiga e silêncio.
 Comunidade cartuxa
Ali, o prior é o encarregado de manter o contacto necessário com o exterior. Não é um contacto fácil ou facilitado. O aviso está bem explícito logo no portão, onde uma placa anuncia a clausura e um letreiro bastante directo demove os turistas de tentarem visitar o convento: “A Cartuxa não se visita.” Ao comentar a mudança na vida dos padres que passam a priores, passando da solidão a uma posição de maior convivência com o mundo, o padre Isidoro, brincando, dizia-me: «Por isso é que quase ninguém quer ser prior.» Num lugar onde não existe televisão ou rádio, esse contacto, por breve que seja, deve trazer uma grande diferença no modo de vida. A eleição para prior é feita por todos os monges. Aliás, as principais escolhas do convento são feitas através de um antigo método democrático. Na sala do Capítulo, os monges são chamados a votar com feijões brancos, pretos e vermelhos, que depositam numa caixa de madeira e que representam “sim”, “não” e voto “em branco”. O fundo da gaveta onde caem os feijões está forrado, de maneira a que não se ouçam cair, para preservar o anonimato da abstenção, também possível.
Num mundo tão ambicioso de efémero, a vocação cartuxa espanta pela forma como leva a fé às suas últimas consequências. Esse quotidiano, aparentemente tão distante deste, é habitado por rostos reais, feitos de décadas passadas no silêncio contemplativo, nesse exterior que é, ao mesmo tempo, tão interior. É por isso que espanta, que marca, e não bastam algumas frases escritas com letra miúda no fim deste texto para agradecer a excepção de nos terem aberto os portões do convento. Eu sei que vão ler estas palavras e, a esses dez monges de Évora, quero expressar gratidão. Obrigado por aquilo que não se vê e por aquilo que não se diz. Obrigado também porque, agora, enquanto estamos aqui, eles estão lá, a fazerem-nos saber que “lá” é um lugar que existe.»