«Dos não crentes recebemos o recentramento do debate», disse o P. Tolentino,sexta-feira passada, dia 16, no lançamento do «Pai-nosso que estais na terra». Por isso «o discurso teológico tem de ser poroso» e acolher poetas e criadores, e também a dissensão, a heterodoxia e a «pergunta mais radical». O crente, por seu lado, «é uma pergunta», «um património de inquietação» que «habita o desconforto» e «calça as sandálias de peregrino, mesmo quando é velho». Por isso, acrescenta o poeta e biblista, eles deixam uma «herança ao mundo e à cultura».
http://www.snpcultura.org/igreja_teologia_cultura_elogio_crentes_e_nao_crentes.html
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
Guilherme Oliveira Martins a propósito de Tolentino Mendonça
«Pai-Nosso que Estais na Terra» de José Tolentino Mendonça (Paulinas, 2011) é, segundo o subtítulo da obra, «o Pai-nosso aberto a crentes e a não-crentes» e José Mattoso afirma que essa abertura constitui uma característica singularíssima desta obra: «há milhares de comentários ao Pai-nosso, a única oração que Jesus nos ensinou. Não conheço nenhum ao nosso Pai que está na Terra». É por aí que o escritor faz do seu comentário um diálogo aberto a todos. Nesse sentido, este é um livro para este tempo, uma vez que procura sinais de esperança num momento de grande dúvida e incerteza.
ENTRE A DISPONIBILIDADE E O ENCONTRO
Estamos perante um livro de disponibilidade e de encontro. Pensei nele, há dias, quando em Ponta Delgada, numa iniciativa da Comissão Diocesana Justiça e Paz, me perguntaram como será possível sermos solidários e próximos nos dias de hoje – e respondi que a melhor maneira é darmo-nos como presentes e disponíveis, em lugar de nos impormos. E é essa disponibilidade de dizer «aqui estou!», fundamental em tempos de solidão e indiferença. O tema deste livro é exatamente esse: o de considerar a disponibilidade de quem dá e de quem recebe. De um modo que apela ao desassossego, o nosso autor fala-nos do Pai-nosso com sinal de unidade que tem tudo a ver connosco, e com as nossas diferenças, por isso nos fala da terra, não como lugar de chegada, mas como ponto de passagem e de partida, como instância de peregrinação. De facto, ao dirigirmo-nos ao Pai que está nos céus e na terra, sentimos que Charles Péguy tem razão ao invocar o sentido pessoal e comunitário de um diálogo: «É necessário salvar-se conjuntamente, precisamos de chegar juntos ao Paraíso, precisamos apresentar-nos juntos no Paraíso. É necessário pensar nos outros, é necessário doar-se aos outros. O que é que Deus nos dirá, se chegarmos ao paraíso sem os outros?». É esta a lição fundamental desta extraordinária oração que se baseia no amor e na responsabilidade para com os outros – a outra metade de nós mesmos. E é assim que a lição fundamental deste belo livro se pode resumir nesta afirmação: «Ao recitar o Pai-nosso somos chamados a viver uma aventura que Jesus quis que fosse assim: partir da nossa experiência humana e comum, do nosso viver ferido para descobri-lo companheiro, como Ele foi companheiro dos discípulos de Emaus, naquele entardecer que é ainda o nosso».
ABRIR O CORAÇÃO
A Regra de S. Bento diz: «Abre o ouvido do teu coração». A arte da escuta exige que o diálogo seja efetivo. «Escutarmos e podermos ser escutados, até ao fundo e até ao fim, abre, no Espírito, horizontes mais amplos do que aqueles que sozinhos conseguiríamos avistar e relança-nos no caminho da esperança». A cada passo encontramos a palavra esperança, ligada ao «bom uso das crises». Num tempo de escassez de mestres, as experiências «são realmente grandes mestres, que têm alguma coisa a ensinar-nos». Mounier falou dos acontecimentos, esses nossos grandes mestres interiores, e Etty Hillesum implorou: «Meu Deus, esta época é demasiado dura para gente frágil como eu. Mas sei igualmente que, a seguir a este, outro tempo virá». Impõe-se, de facto, neste tempo de crise, uma atenção especial ao que nos rodeia, e dessa atenção tem de resultar o cuidado, que está na etimologia de caridade. Por que razão chegámos aqui? Porque não cuidámos de algumas coisas elementares, designadamente de que o progresso não é ilimitado e de que o desenvolvimento humano não existe, se não pusermos as pessoas no centro da economia e da sociedade. Daí que a austeridade que aí está e que até pode ser boa conselheira, não possa ser cega e surda relativamente à justiça. Não é um fim em si, a austeridade tem de ser um instrumento de dignidade e de respeito mútuo. Tem de ser modéstia, sobriedade e de reciprocidade. «Todas as vidas cabem na imagem quotidiana, quase trivial, do pão que se parte e reparte. Porque as vidas são coisas semeadas, crescidas, maturadas, ceifadas, trituradas, amassadas: são como pão. Porque não apenas degustamos e consumimos o mundo: dentro de nós vamos percebendo que o mundo, que o tempo, também nos consome, nos gasta, nos devora. Por boas e por más razões, ninguém permanece inteiro. Somos uma massa que se quebra, um miolo que se esfarela, uma espessura que diminui». Não podemos continuar a pôr o consumo desenfreado em primeiro lugar, a gastar o que se tem e o que se não tem, a viver a crédito, a julgar que a especulação pode ocupar o lugar da criação, a jogar permanentemente com as aparências, a praticar a ilusão dos resultados que não existem – tudo isso obriga a compreender que devemos merecer o pão nosso de cada dia.
O MISTÉRIO DAS TENTAÇÕES
José Tolentino Mendonça recorda, em determinado momento do seu livro, o episódio das tentações de Jesus: «Então o espírito conduziu Jesus ao deserto, a fim de ser tentado pelo diabo. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome. O tentador aproximou-se e disse-lhe: “Se Tu és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se convertam em pães”. Respondeu-lhe Jesus: “Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”». Depois, conhece-se o que segue: o diabo coloca primeiro Jesus sobre o pináculo do templo e em seguida num monte muito alto, mostrando-lhe todos os reinos do mundo com a sua glória. Mas o resultado é que, em face das respostas de Jesus, «o diabo deixou-o e chegaram os anjos e serviram-no» (Mt., 4,1-11). O autor diz-nos que estas tentações não aconteceram num só dia e que representam a vivência das provações da condição humana. Mas quais as tentações que nos rodeiam e que aqui estão figuradas? O materialismo, o providencialismo e o absolutismo. O materialismo e a idolatria da matéria, numa vertigem de tudo ocupar com a satisfação imediata dos desejos e das explicações simplificadoras. O providencialismo, que confunde a relação com Deus com as interpretações fantasiosas e mágicas. «Não nos podemos atirar de pináculos para que Deus nos segure. Temos de integrar saudavelmente os nossos limites e fazer a nossa parte». E o absolutismo, que faz «do domínio da posse a fonte de felicidade» e que confunde a glória passageira com a experiência da magnitude da dignidade. Mas, para o nosso escritor, temos de lembrar uma quarta tentação, bem ilustrada pelo drama de T.S. Eliot «Crime na Catedral». Aí o que está em causa tem a ver com os desejos de fidelidade poderem ser sinais de orgulho e de vaidade… Será que não cometemos o pecado da soberba perante as virtudes que julgamos possuir? E é essa quarta tentação que pode minar a confiança, uma vez que ela é verosímil e que nos pode atingir. O cristianismo caracteriza-se, porém, por aproximar o exemplo do Filho de Deus das nossas próprias provações. Não se trata de nos compararmos com Alguém que não pode compreender-nos, mas de colocar as nossas angústias ao alcance do próprio Deus. Essa é a chave da Encarnação. «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» - os ecos do Salmo são o ponto nodal de um profundo diálogo. Daí a confiança nascida numa comparticipação que tem a ver com a experiência humana. E Simone Weil afirma: «Só a confiança dá suficiente força para que o receio não seja a causa da queda».
«VAI ONDE NÃO POSSAS...»
Angelus Silesius diz: «Vai onde não possas / vê onde não vês: / escuta onde não ressoa / e assim estarás onde Deus fala». Este é o silêncio fundamental que exige que oiçamos o essencial por parte de quem «é o Jesus que nos interpela a cada passo e inesperadamente». Com fome, deste-me de comer, com sede deste-me de beber, nu, vestiste-me… Afinal, esse é o sinal de responsabilidade que se nos pede. E este ir onde se não possa, não é mais do que ser cada vez mais exigente e nunca acomodado, mantendo os olhos abertos.
Guilherme d'Oliveira Martins
ENTRE A DISPONIBILIDADE E O ENCONTRO
Estamos perante um livro de disponibilidade e de encontro. Pensei nele, há dias, quando em Ponta Delgada, numa iniciativa da Comissão Diocesana Justiça e Paz, me perguntaram como será possível sermos solidários e próximos nos dias de hoje – e respondi que a melhor maneira é darmo-nos como presentes e disponíveis, em lugar de nos impormos. E é essa disponibilidade de dizer «aqui estou!», fundamental em tempos de solidão e indiferença. O tema deste livro é exatamente esse: o de considerar a disponibilidade de quem dá e de quem recebe. De um modo que apela ao desassossego, o nosso autor fala-nos do Pai-nosso com sinal de unidade que tem tudo a ver connosco, e com as nossas diferenças, por isso nos fala da terra, não como lugar de chegada, mas como ponto de passagem e de partida, como instância de peregrinação. De facto, ao dirigirmo-nos ao Pai que está nos céus e na terra, sentimos que Charles Péguy tem razão ao invocar o sentido pessoal e comunitário de um diálogo: «É necessário salvar-se conjuntamente, precisamos de chegar juntos ao Paraíso, precisamos apresentar-nos juntos no Paraíso. É necessário pensar nos outros, é necessário doar-se aos outros. O que é que Deus nos dirá, se chegarmos ao paraíso sem os outros?». É esta a lição fundamental desta extraordinária oração que se baseia no amor e na responsabilidade para com os outros – a outra metade de nós mesmos. E é assim que a lição fundamental deste belo livro se pode resumir nesta afirmação: «Ao recitar o Pai-nosso somos chamados a viver uma aventura que Jesus quis que fosse assim: partir da nossa experiência humana e comum, do nosso viver ferido para descobri-lo companheiro, como Ele foi companheiro dos discípulos de Emaus, naquele entardecer que é ainda o nosso».
ABRIR O CORAÇÃO
A Regra de S. Bento diz: «Abre o ouvido do teu coração». A arte da escuta exige que o diálogo seja efetivo. «Escutarmos e podermos ser escutados, até ao fundo e até ao fim, abre, no Espírito, horizontes mais amplos do que aqueles que sozinhos conseguiríamos avistar e relança-nos no caminho da esperança». A cada passo encontramos a palavra esperança, ligada ao «bom uso das crises». Num tempo de escassez de mestres, as experiências «são realmente grandes mestres, que têm alguma coisa a ensinar-nos». Mounier falou dos acontecimentos, esses nossos grandes mestres interiores, e Etty Hillesum implorou: «Meu Deus, esta época é demasiado dura para gente frágil como eu. Mas sei igualmente que, a seguir a este, outro tempo virá». Impõe-se, de facto, neste tempo de crise, uma atenção especial ao que nos rodeia, e dessa atenção tem de resultar o cuidado, que está na etimologia de caridade. Por que razão chegámos aqui? Porque não cuidámos de algumas coisas elementares, designadamente de que o progresso não é ilimitado e de que o desenvolvimento humano não existe, se não pusermos as pessoas no centro da economia e da sociedade. Daí que a austeridade que aí está e que até pode ser boa conselheira, não possa ser cega e surda relativamente à justiça. Não é um fim em si, a austeridade tem de ser um instrumento de dignidade e de respeito mútuo. Tem de ser modéstia, sobriedade e de reciprocidade. «Todas as vidas cabem na imagem quotidiana, quase trivial, do pão que se parte e reparte. Porque as vidas são coisas semeadas, crescidas, maturadas, ceifadas, trituradas, amassadas: são como pão. Porque não apenas degustamos e consumimos o mundo: dentro de nós vamos percebendo que o mundo, que o tempo, também nos consome, nos gasta, nos devora. Por boas e por más razões, ninguém permanece inteiro. Somos uma massa que se quebra, um miolo que se esfarela, uma espessura que diminui». Não podemos continuar a pôr o consumo desenfreado em primeiro lugar, a gastar o que se tem e o que se não tem, a viver a crédito, a julgar que a especulação pode ocupar o lugar da criação, a jogar permanentemente com as aparências, a praticar a ilusão dos resultados que não existem – tudo isso obriga a compreender que devemos merecer o pão nosso de cada dia.
O MISTÉRIO DAS TENTAÇÕES
José Tolentino Mendonça recorda, em determinado momento do seu livro, o episódio das tentações de Jesus: «Então o espírito conduziu Jesus ao deserto, a fim de ser tentado pelo diabo. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome. O tentador aproximou-se e disse-lhe: “Se Tu és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se convertam em pães”. Respondeu-lhe Jesus: “Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”». Depois, conhece-se o que segue: o diabo coloca primeiro Jesus sobre o pináculo do templo e em seguida num monte muito alto, mostrando-lhe todos os reinos do mundo com a sua glória. Mas o resultado é que, em face das respostas de Jesus, «o diabo deixou-o e chegaram os anjos e serviram-no» (Mt., 4,1-11). O autor diz-nos que estas tentações não aconteceram num só dia e que representam a vivência das provações da condição humana. Mas quais as tentações que nos rodeiam e que aqui estão figuradas? O materialismo, o providencialismo e o absolutismo. O materialismo e a idolatria da matéria, numa vertigem de tudo ocupar com a satisfação imediata dos desejos e das explicações simplificadoras. O providencialismo, que confunde a relação com Deus com as interpretações fantasiosas e mágicas. «Não nos podemos atirar de pináculos para que Deus nos segure. Temos de integrar saudavelmente os nossos limites e fazer a nossa parte». E o absolutismo, que faz «do domínio da posse a fonte de felicidade» e que confunde a glória passageira com a experiência da magnitude da dignidade. Mas, para o nosso escritor, temos de lembrar uma quarta tentação, bem ilustrada pelo drama de T.S. Eliot «Crime na Catedral». Aí o que está em causa tem a ver com os desejos de fidelidade poderem ser sinais de orgulho e de vaidade… Será que não cometemos o pecado da soberba perante as virtudes que julgamos possuir? E é essa quarta tentação que pode minar a confiança, uma vez que ela é verosímil e que nos pode atingir. O cristianismo caracteriza-se, porém, por aproximar o exemplo do Filho de Deus das nossas próprias provações. Não se trata de nos compararmos com Alguém que não pode compreender-nos, mas de colocar as nossas angústias ao alcance do próprio Deus. Essa é a chave da Encarnação. «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» - os ecos do Salmo são o ponto nodal de um profundo diálogo. Daí a confiança nascida numa comparticipação que tem a ver com a experiência humana. E Simone Weil afirma: «Só a confiança dá suficiente força para que o receio não seja a causa da queda».
«VAI ONDE NÃO POSSAS...»
Angelus Silesius diz: «Vai onde não possas / vê onde não vês: / escuta onde não ressoa / e assim estarás onde Deus fala». Este é o silêncio fundamental que exige que oiçamos o essencial por parte de quem «é o Jesus que nos interpela a cada passo e inesperadamente». Com fome, deste-me de comer, com sede deste-me de beber, nu, vestiste-me… Afinal, esse é o sinal de responsabilidade que se nos pede. E este ir onde se não possa, não é mais do que ser cada vez mais exigente e nunca acomodado, mantendo os olhos abertos.
Guilherme d'Oliveira Martins
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
Egipto: Irmandade Muçulmana opõe-se ao exército, aumentando receios na comunidade cristã
«A Irmandade Muçulmana, o partido islâmico que venceu com 36,6% dos votos a segunda volta das eleições legislativas no Egipto, decidiu ontem retirar-se do grupo de contacto com o Exército, acusando-o de “marginalizar o Parlamento” encarregado de nomear a comissão que redigirá a futura Constituição do Egipto.
Mohamed el-Baltagui, um dos dirigentes do partido Liberdade e Justiça, ligado à Irmandade, indicou que este abandono ocorre “após as afirmações do general Mokhtar el-Mulla”, membro do Conselho Militar no poder, de que o Parlamento não terá a exclusividade das nomeações desta comissão.
“Consideramos que qualquer tentativa de marginalizar o Parlamento ou de reduzir as suas prerrogativas em favor de qualquer outra entidade não eleita é uma forma de ignorar a vontade popular”, declarou Baltagui à agência France Presse.
O general Mulla, membro do Conselho Supremo das Forças Armadas no comando desde a queda de Hosni Mubarak, assegurou que o futuro parlamento não “será representativo” de todos os egípcios, segundo declarações divulgadas ontem pelo jornal britânico The Guardian.
Em consequência disso, ele afirmou que os nomeados para redigir a futura Constituição devem também ser aprovados pelo governo de transição e por esse “Conselho Consultivo”, duas instituições controladas pelo Conselho Supremo das Forças Armadas.
Esta questão é tanto mais significativa para a comunidade cristã copta, que representa apenas cerca de 10 por cento dos 80 milhões de habitantes do país, pois é indisfarcável o receio perante a subida ao poder dos partidos islamistas, sendo que alguns deles, sendo fundamentalistas, pregam um Estado islâmico, baseado na sharia, a lei islâmica.
A redacção da futura constituição será determinante para se saber qual o verdadeiro grau de liberdade religiosa que irá prevalecer no país.»
Departamento de Informação da Fundação AIS
Mohamed el-Baltagui, um dos dirigentes do partido Liberdade e Justiça, ligado à Irmandade, indicou que este abandono ocorre “após as afirmações do general Mokhtar el-Mulla”, membro do Conselho Militar no poder, de que o Parlamento não terá a exclusividade das nomeações desta comissão.
“Consideramos que qualquer tentativa de marginalizar o Parlamento ou de reduzir as suas prerrogativas em favor de qualquer outra entidade não eleita é uma forma de ignorar a vontade popular”, declarou Baltagui à agência France Presse.
O general Mulla, membro do Conselho Supremo das Forças Armadas no comando desde a queda de Hosni Mubarak, assegurou que o futuro parlamento não “será representativo” de todos os egípcios, segundo declarações divulgadas ontem pelo jornal britânico The Guardian.
Em consequência disso, ele afirmou que os nomeados para redigir a futura Constituição devem também ser aprovados pelo governo de transição e por esse “Conselho Consultivo”, duas instituições controladas pelo Conselho Supremo das Forças Armadas.
Esta questão é tanto mais significativa para a comunidade cristã copta, que representa apenas cerca de 10 por cento dos 80 milhões de habitantes do país, pois é indisfarcável o receio perante a subida ao poder dos partidos islamistas, sendo que alguns deles, sendo fundamentalistas, pregam um Estado islâmico, baseado na sharia, a lei islâmica.
A redacção da futura constituição será determinante para se saber qual o verdadeiro grau de liberdade religiosa que irá prevalecer no país.»
Departamento de Informação da Fundação AIS
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Governo francês condecora José António Falcão!
O arquitecto José António Falcão, director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, explica que o “mais importante” da distinção é que ela constitui “um sinal de que aquilo que está a ser feito no Alentejo não passa despercebido às autoridades francesas”, que quiseram realçar “que o trabalho é relevante e deve ser continuado”, acentuou.“O aspeto mais delicado” da condecoração foi a recuperação do estudo de uma das “obras-primas da arte francesa”, ‘A Morte de Sardanápalo’, do pintor francês Eugène Delacroix (1798-1863), roubado em 1988 da Casa dos Patudos, em Alpiarça.“Com muita persistência conseguiu-se que essa e outras peças voltassem a Portugal”, explicou o especialista em património religioso, que trabalhou no museu entre 1993 e 1995 como conservador, e de 2003 a 2008 como diretor.A obra viria a ser recuperada pela polícia italiana em 1995, no interior de uma igreja abandonada de Milão, que servia de esconderijo para peças furtadas.
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
domingo, 6 de novembro de 2011
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
Fazer a diferença
A vocação do silêncio: José Luís Peixoto na Cartuxa de Évora
«Caminhava com o prior ao longo dos claustros quando os sinos começaram a tocar. A dissolverem-se no céu ou a retinirem nas paredes de pedra, chamavam para as vésperas e, longamente, acompanharam-nos até à entrada da igreja. A tarde dobrava o ponto em que o calor se transformava em calma, primavera de Deus. No interior da igreja, era fresco o eco da lonjura. Quase indistinto dos objectos e das imagens, imóvel, sentado, com o capuz a cobrir-lhe a cabeça, estava um monge velho, curvado. O prior apontou-me um lugar, fez-me gesto para esperar ali e saiu. O monge e eu ficámos a respirar. Foi então que o silêncio começou.
Calcular a passagem do tempo dentro do silêncio é comparável a contar segundos pela chama de uma vela ou por um abraço. Semelhante a estes dois exemplos, também o silêncio transporta um sentido imperturbável que é maior do que o tempo que pode ser medido. Como se acontecesse noutro lugar, como se ignorasse os minutos e, assim, lhes subtraísse toda a força da sua importância. O silêncio não se deixa transformar por horas, dias ou séculos. Aquilo que o silêncio era em 1084, quando São Bruno fundou a Ordem da Cartuxa, continua a ser, hoje, o silêncio.
Não sei quantos minutos passaram até começarem a chegar monges e o prior entre eles. Os passos no estrado de madeira, o som de encontrarem o seu lugar, de tirarem os livros enormes e de os abrirem. E ninguém dirigia a atenção para fora daquilo que estava a fazer, ninguém fazia um gesto desnecessário, ninguém procurava o olhar de ninguém. As vésperas são o último serviço litúrgico no dia de um monge cartuxo. O primeiro tem início à meia-noite e, na semiescuridão da capela, dura cerca de duas horas e meia. São as matinas. Dividem o sono dos cartuxos, que dormem entre as oito e trinta e um pouco antes da meia-noite, voltando depois a dormir entre as três e as seis e meia da manhã. Às oito, inicia-se a missa, que dura cerca de uma hora. Nesses três momentos diários, sem acompanhamento instrumental, apenas voz, os monges cartuxos cantam. Naquele fim de tarde, quando todos estavam prontos, quando chegou o instante, o prior começou a cantar. Era quinta-feira, cantaram-se os salmos das quintas-feiras, 138, 139 e 140. Em gregoriano, um dos lados da igreja cantava um verso, o outro lado da igreja respondia com o seguinte. Encostados a paredes opostas, virados uns para os outros, de cabeça baixa, coberta pelo capuz branco do hábito, com o rosto fixo nas páginas do livro, os monges cantavam em português. Na vibração das vozes, dentro da sua mistura colectiva, era possível distinguir-se os erres suaves do monge californiano e, noutras vezes, os erres mais rasgados dos monges espanhóis.
O Convento de Santa Maria Scala Coeli, em Évora, conhecido como Convento da Cartuza, único convento activo desta ordem em Portugal, é a casa de sete monges espanhóis, dois portugueses e um norte-americano. Além destes, o convento recebe um número variável de aspirantes. A língua comum é o português, que, neste caso, não é tanto uma língua de falar, mas é sobretudo uma língua de ler, de pensar ou, mais ainda, é uma língua de orar. A Cartuxa é uma ordem contemplativa: entre os seus princípios fundamentais encontram-se a oração, a clausura, o silêncio e a solidão.
Scala Coeli significa “escada do céu”
E, realmente, é compreensível que, no tempo em que os textos sagrados se escreviam, tenha sido necessário o céu para simbolizar esse Deus omnipotente. À saída das vésperas, estava um céu imenso sobre o pátio do convento, era um céu de bondade. Os monges caminhavam e, um a um, iam entrando pelas portas baixas, distribuídas ao longo da distância dos claustros. O som breve, discreto, de cada porta a fechar-se. Os monges cartuxos passam a maior parte do dia na sua cela. Despida de tudo o que não seja devoto ou prático, cada cela é individual e constituída por uma primeira sala com lareira para acender no inverno e genuflexório, um pequeno escritório com secretária e cadeira, uma divisão de oração, um quarto com cama muito austera, catre com colchão de esponja, e um pátio quadrado de sol e plantas, com casa de banho ao fundo. As horas, os dias são preenchidas com oração e leitura. As refeições são servidas por uma janela e recolhidas desde o interior, através de um sistema pensado para evitar o contacto entre os dois lados. As leituras são escolhidas da biblioteca, onde a quase exclusividade dos livros são religiosos ou espirituais, com secções como Mariologia, Patrologia, Cristologia, Dogma, entre outras. Reparei nos títulos de alguns dos últimos livros consultados: “Ser Cristão Num Mundo Hostil”, “A Teologia da Doença”, “O envelhecimento”. Faz sentido que o envelhecimento seja um motivo de interesse na Cartuxa de Évora: quatro dos monges são octogenários, quatro são septuagenários, um está nos cinquentas e outro nos quarentas. Quanto aos aspirantes, mais jovens, até aos votos solenes, nunca é garantido que sigam a vocação cartuxa. Ao longo dos sete anos de preparação, incluindo postulantado, noviciado e votos temporários, os aspirantes têm liberdade de repensar a sua escolha e sair. O que acontece num grande número de exemplos.
Além da vida na cela, os monges tentam que o mosteiro se aproxime da auto-suficiência e, para tal, dedicam-se a diversos ofícios. Entre os cartuxos, há alfaiate, electricista, pedreiro, serralheiro, etc. Salta à vista a cuidada manutenção do mosteiro e um laranjal no pátio, que, nesta época, está carregado. O padre Isidoro não me deixou sair sem me entregar um saco cheio dessas laranjas. Algumas ainda estão ali, a olhar para mim. São doces. Mas aquilo que demove aspirantes, o sacrifício que torna a vida cartuxa tão específica é o seu carácter eremita. Até as escalas de trabalho são planeadas de modo a que cada monge desenvolva as suas tarefas sozinho, sem companhia. Com a excepção dos domingos e dos dias de festa, os monges cartuxos mantêm o silêncio total. Nessas datas, existe um período de recreio em que conversam, entre as três e as cinco da tarde. Essa é uma conversa colectiva, em que todos ouvem o que é dito. Os monges não aguardam essas horas com impaciência. Uma boa parte deles limita-se a ouvir e há mesmo alguns que podem escolher não participar, recolhendo-se à cela. É também nesses dias que o almoço é tomado em conjunto, simultâneo à leitura ininterrupto de um texto religioso, feita no centro do refeitório. A carne nunca faz parte da ementa dos cartuxos, apenas vegetais, peixe e lacticínios. As sextas são passadas a pão e água. Individualmente, os monges podem escolher fazer períodos de jejum, bastando para isso afixar uma tabuleta com a palavra “abstinência” na janela onde os tabuleiros das refeições são servidos.
Quando o clima permite, a clausura é amenizada por um passeio semanal pelos campos ou a um lugar próximo de interesse religioso ou histórico. Esse instante recreativo permite aos monges caminharem em grupos de dois e dá-lhes a oportunidade de falarem de si próprios. Além dessa ocasião, as raras saídas do convento restringem-se a idas ao médico. A clausura é um compromisso para toda a vida e implica, por exemplo, o sacrifício da família. No escritório, recordando, o padre Antão, prior da Cartuxa de Évora, contou-me que os seus pais, quando eram vivos, para aproveitarem a oportunidade, o visitavam separadamente, no aniversário de um e de outro, em Abril e em Outubro. Ao ouvi-lo, não consegui evitar dirigir o meu olhar na direcção do telefone, o único de todo o convento, o mesmo para onde tinha ligado várias vezes, tentando imaginar onde era atendido. Sei agora que era atendido numa divisão de paredes grossas, brancas, com uma secretária de madeira antiga e silêncio.
Comunidade cartuxa
Ali, o prior é o encarregado de manter o contacto necessário com o exterior. Não é um contacto fácil ou facilitado. O aviso está bem explícito logo no portão, onde uma placa anuncia a clausura e um letreiro bastante directo demove os turistas de tentarem visitar o convento: “A Cartuxa não se visita.” Ao comentar a mudança na vida dos padres que passam a priores, passando da solidão a uma posição de maior convivência com o mundo, o padre Isidoro, brincando, dizia-me: «Por isso é que quase ninguém quer ser prior.» Num lugar onde não existe televisão ou rádio, esse contacto, por breve que seja, deve trazer uma grande diferença no modo de vida. A eleição para prior é feita por todos os monges. Aliás, as principais escolhas do convento são feitas através de um antigo método democrático. Na sala do Capítulo, os monges são chamados a votar com feijões brancos, pretos e vermelhos, que depositam numa caixa de madeira e que representam “sim”, “não” e voto “em branco”. O fundo da gaveta onde caem os feijões está forrado, de maneira a que não se ouçam cair, para preservar o anonimato da abstenção, também possível.
Num mundo tão ambicioso de efémero, a vocação cartuxa espanta pela forma como leva a fé às suas últimas consequências. Esse quotidiano, aparentemente tão distante deste, é habitado por rostos reais, feitos de décadas passadas no silêncio contemplativo, nesse exterior que é, ao mesmo tempo, tão interior. É por isso que espanta, que marca, e não bastam algumas frases escritas com letra miúda no fim deste texto para agradecer a excepção de nos terem aberto os portões do convento. Eu sei que vão ler estas palavras e, a esses dez monges de Évora, quero expressar gratidão. Obrigado por aquilo que não se vê e por aquilo que não se diz. Obrigado também porque, agora, enquanto estamos aqui, eles estão lá, a fazerem-nos saber que “lá” é um lugar que existe.»
segunda-feira, 31 de outubro de 2011
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
quarta-feira, 19 de outubro de 2011
Agustina Bessa-Luís «A recuperação da culpa»
«A Cultura Europeia encontra-se, há pelo menos seis décadas, numa situação embaraçosa. Ao serem solucionados problemas da saúde e do trabalho; ao crescerem as hipóteses e as profecias do bem-estar, o espírito criador foi sofrendo na sua raiz uma lesão profunda. A solidão, tão cara ao homem de pensamento e necessária à sua originalidade, foi sendo condenada pelo apelo à aldeia global. As fronteiras, ao caírem, produziram um fenómeno de desorientação; os mass-media, ao servirem os grandes espaços geofísicos, contribuíram para uma desmobilização do génio.
Não é de estranhar que a Cultura se tornasse uma espécie de cruzada, sem objetivos exceto os de menos alcance e que competem aos programas locais, de divulgação mais excitante. Mas o pensamento ficou bloqueado, o cérebro humano não responde aos estímulos da paixão criadora. Os modelos heroicos foram surpreendidos por uma concorrência de robots, que desiludem os homens e deixam as sociedades perturbadas quanto aos seus direitos à imaginação própria. No entanto, é preciso enfrentar as condições oferecidas por uma nova era que se quer propensa à esperança genuína dos povos. Uma era de Cultura.
A Cultura é, em princípio, um sentimento de afeto pelo mundo que nos rodeia. Se o afeto das situações não for contemplado, a Cultura não passa do âmbito das instituições que a nomeiam e tentam proteger. Ao ampliar os seus horizontes físicos, o homem sente-se tentado a julgar-se preparado para o acontecimento da Cultura. Porém, conhecer mais nomes célebres e lugares estranhos não desperta o caráter primordial duma cultura, que é o ser livre de orgulho e dispensado da inteligência de grupo. Toda a diferenciação cria qualquer forma de fanatismo. A Cultura instalou-se sempre partindo duma diferenciação. É um direito, sem dúvida, mas em que medida um direito não é também uma culpa?
Para vivermos plenamente um direito, temos de nos mover dentro do afeto desse direito. Não na autoridade ou no espírito da lei que lhe assiste, mas no afeto do direito. E o afeto da culpa? Quando ele nos é negado, morremos no corpo e no espírito.
A um auditório de mulheres de cultura, faria sentido eu dirigir a seguinte pergunta: porque é que a culpa foi, através dos tempos, atribuída às mulheres? Ao atribuir-se à mulher um estado de culpa, não se estará a dignificar a culpa como motivadora duma civilização? É possível. Nesse caso, a mulher, como portadora duma culpa, é sempre iniciadora duma cultura. A culpa, nesse caso e aqui, não é um opróbrio, mas uma consequência da própria infalibilidade. Só da culpa a pessoa pode elevar-se. A cultura parte do pressuposto duma culpa. Só ela se interroga. Só ela desencadeia o conflito.
S. Boaventura, porque observa a ordem da justiça com particular atenção, considera o pecado original não só imputável à mulher, mas também ao varão por não a ter contido e reprimido. O homem teme, ao mover a mulher a seguir a razão, perder a sua parte de deleite sensual de que a sociedade fez um bem útil. É de prever que novas capacidades intelectuais e morais estejam em evolução no homem do futuro. A sua sensibilidade ganhará forma no sentido de o aproximar de uma linguagem mais universal do que tribal. A literatura e as artes serão cultivadas como uma religião de ascetas, provavelmente. A ascese é a escolha duma inovação. É uma prova da inovação.
Entretanto, um dos grandes impasses da Cultura reside nos conflitos entre o prazer que a sociedade adapta ao seu sistema, e a vinculação ao desprazer, ou seja, ao trabalho e a todas as propostas difíceis.
O mundo está constituído por etnias cujas contradições não são absorvidas tão rapidamente como se movem e se reproduzem. A Cultura, fenómeno de sedimentação de experiências, tornou-se num expediente, numa tática e num consentimento sem obra.
Todas as pessoas possuem um dom que protege há milhões de anos a sua vida na terra. É uma espécie de infalibilidade que previne o instinto de morte de se desenvolver e nos destruir. Não tem a ver com a opção, mas com um acordo comum entre todas as espécies. A vontade do homem apoia assim o interesse dos políticos que, como Ciro, fazem de cada lar um bordel, para deste modo governarem as metrópoles com menos despesa de guarnições.
A Europa enfrenta-se com o seu dom de infalibilidade. Decisão, partilha, amor e cultura têm de ser conduzidos pela mão da infalibilidade. Senão, tudo não passará de muito barulho para nada.
O afeto da cultura, mais do que o planeamento da Cultura, a infalibilidade, mais do que a certeza, serão auxiliares para nos podermos conhecer e libertar.
São estas as ideias para uma renovação da Cultura. São ideias que marcam o entendimento do tempo comum europeu, tanto atlântico como mediterrânico.
O tempo europeu, subsidiário da cultura helénica e romana, encontra hoje o vazio do pensamento que a serviu. As dicotomias bem e mal, justo e injusto, puro e impuro, sofrem grandes provações. A tendência é para recuperar do passado velhas fórmulas cuja sabedoria está confundida com preconceitos mutáveis.
Que nome daremos à atualidade da culpa, única forma de instaurar uma cultura? É com certeza nome de mulher. O nome do eterno feminino que o Dr. Fausto reconheceu não sem admiração. «A tua incerteza mata-me» - diz Fausto a Margarida. E ela está completamente nas últimas palavras que profere: «Causas-me horror!»
Freud deu o último abanão ao sentimento burguês de culpa. Depois disso a sociedade não parou de conferir ao prazer uma inteligência como forma de reprimir os ideais, mais perigosos do que o instinto do prazer.
É certo que a culpa pode submeter os homens a um simples treino da infelicidade. Hoje, o homem está capacitado de ser infeliz, apesar de as condições de vida serem melhores. Os seus padecimentos são demonstrados, são, por assim dizer, consumidos. Mas não correspondem a qualquer glória integrada no mistério humano.
Conheci uma mulher pobre e, além disso, atrasada mental. Ela passava os dias prestando serviços gratuitos numa pequena loja onde eu ia fazer as minhas compras do dia: o pão, o leite, a fruta. Ela vigiava-me para que eu não escolhesse a fruta e repreendia-me se eu o fazia. Até que, um dia, a dona da loja lhe fez ver que eu era uma pessoa importante e que não podia tratar-me dessa maneira. No fundo, eu achei que aquela mulher era idiota e que alguém devia pô-la na ordem.
Só que, alguns dias depois, a mulher apareceu morta em casa. Embora todos comentassem aquilo sem qualquer emoção duradoura, eu pensei que alguma coisa teria acontecido que lhe tivesse provocado a morte. Ela tinha sido atingida na sua infalibilidade. Há um ponto na razão que comandou a infalibilidade, o direito de julgar e de agir conforme o afeto da justiça. Eu tinha ferido de morte a infalibilidade dessa mulher. Ela viu-se como todos a viam: pobre e inútil, sobretudo, fora da inteligência da culpa. Eu e os outros não a culpávamos. Mas também não a amávamos.
A mulher-objeto, a mulher-demónio, não são senão interpretações da culpa. A mulher não representa maior perigosidade do que o homem, e isso tenta-se demonstrar ao situá-la numa escala inferior, ou numa situação submissa. Mas o que muito se demonstra sofre de falta de convicção.
A mulher conhece-se a si mesma; o homem não. Não é por acaso que o oráculo de Delfos, uma mulher, aconselhe o homem a conhecer-se a si mesmo, o que produziria o estado de culpa. A culpa que não se descreve por meio de qualquer linguagem, é unicamente uma via onde se cruzam a vida e a morte.
Não é de estranhar que a Cultura se tornasse uma espécie de cruzada, sem objetivos exceto os de menos alcance e que competem aos programas locais, de divulgação mais excitante. Mas o pensamento ficou bloqueado, o cérebro humano não responde aos estímulos da paixão criadora. Os modelos heroicos foram surpreendidos por uma concorrência de robots, que desiludem os homens e deixam as sociedades perturbadas quanto aos seus direitos à imaginação própria. No entanto, é preciso enfrentar as condições oferecidas por uma nova era que se quer propensa à esperança genuína dos povos. Uma era de Cultura.
A Cultura é, em princípio, um sentimento de afeto pelo mundo que nos rodeia. Se o afeto das situações não for contemplado, a Cultura não passa do âmbito das instituições que a nomeiam e tentam proteger. Ao ampliar os seus horizontes físicos, o homem sente-se tentado a julgar-se preparado para o acontecimento da Cultura. Porém, conhecer mais nomes célebres e lugares estranhos não desperta o caráter primordial duma cultura, que é o ser livre de orgulho e dispensado da inteligência de grupo. Toda a diferenciação cria qualquer forma de fanatismo. A Cultura instalou-se sempre partindo duma diferenciação. É um direito, sem dúvida, mas em que medida um direito não é também uma culpa?
Para vivermos plenamente um direito, temos de nos mover dentro do afeto desse direito. Não na autoridade ou no espírito da lei que lhe assiste, mas no afeto do direito. E o afeto da culpa? Quando ele nos é negado, morremos no corpo e no espírito.
A um auditório de mulheres de cultura, faria sentido eu dirigir a seguinte pergunta: porque é que a culpa foi, através dos tempos, atribuída às mulheres? Ao atribuir-se à mulher um estado de culpa, não se estará a dignificar a culpa como motivadora duma civilização? É possível. Nesse caso, a mulher, como portadora duma culpa, é sempre iniciadora duma cultura. A culpa, nesse caso e aqui, não é um opróbrio, mas uma consequência da própria infalibilidade. Só da culpa a pessoa pode elevar-se. A cultura parte do pressuposto duma culpa. Só ela se interroga. Só ela desencadeia o conflito.
S. Boaventura, porque observa a ordem da justiça com particular atenção, considera o pecado original não só imputável à mulher, mas também ao varão por não a ter contido e reprimido. O homem teme, ao mover a mulher a seguir a razão, perder a sua parte de deleite sensual de que a sociedade fez um bem útil. É de prever que novas capacidades intelectuais e morais estejam em evolução no homem do futuro. A sua sensibilidade ganhará forma no sentido de o aproximar de uma linguagem mais universal do que tribal. A literatura e as artes serão cultivadas como uma religião de ascetas, provavelmente. A ascese é a escolha duma inovação. É uma prova da inovação.
Entretanto, um dos grandes impasses da Cultura reside nos conflitos entre o prazer que a sociedade adapta ao seu sistema, e a vinculação ao desprazer, ou seja, ao trabalho e a todas as propostas difíceis.
O mundo está constituído por etnias cujas contradições não são absorvidas tão rapidamente como se movem e se reproduzem. A Cultura, fenómeno de sedimentação de experiências, tornou-se num expediente, numa tática e num consentimento sem obra.
Todas as pessoas possuem um dom que protege há milhões de anos a sua vida na terra. É uma espécie de infalibilidade que previne o instinto de morte de se desenvolver e nos destruir. Não tem a ver com a opção, mas com um acordo comum entre todas as espécies. A vontade do homem apoia assim o interesse dos políticos que, como Ciro, fazem de cada lar um bordel, para deste modo governarem as metrópoles com menos despesa de guarnições.
A Europa enfrenta-se com o seu dom de infalibilidade. Decisão, partilha, amor e cultura têm de ser conduzidos pela mão da infalibilidade. Senão, tudo não passará de muito barulho para nada.
O afeto da cultura, mais do que o planeamento da Cultura, a infalibilidade, mais do que a certeza, serão auxiliares para nos podermos conhecer e libertar.
São estas as ideias para uma renovação da Cultura. São ideias que marcam o entendimento do tempo comum europeu, tanto atlântico como mediterrânico.
O tempo europeu, subsidiário da cultura helénica e romana, encontra hoje o vazio do pensamento que a serviu. As dicotomias bem e mal, justo e injusto, puro e impuro, sofrem grandes provações. A tendência é para recuperar do passado velhas fórmulas cuja sabedoria está confundida com preconceitos mutáveis.
Que nome daremos à atualidade da culpa, única forma de instaurar uma cultura? É com certeza nome de mulher. O nome do eterno feminino que o Dr. Fausto reconheceu não sem admiração. «A tua incerteza mata-me» - diz Fausto a Margarida. E ela está completamente nas últimas palavras que profere: «Causas-me horror!»
Freud deu o último abanão ao sentimento burguês de culpa. Depois disso a sociedade não parou de conferir ao prazer uma inteligência como forma de reprimir os ideais, mais perigosos do que o instinto do prazer.
É certo que a culpa pode submeter os homens a um simples treino da infelicidade. Hoje, o homem está capacitado de ser infeliz, apesar de as condições de vida serem melhores. Os seus padecimentos são demonstrados, são, por assim dizer, consumidos. Mas não correspondem a qualquer glória integrada no mistério humano.
Conheci uma mulher pobre e, além disso, atrasada mental. Ela passava os dias prestando serviços gratuitos numa pequena loja onde eu ia fazer as minhas compras do dia: o pão, o leite, a fruta. Ela vigiava-me para que eu não escolhesse a fruta e repreendia-me se eu o fazia. Até que, um dia, a dona da loja lhe fez ver que eu era uma pessoa importante e que não podia tratar-me dessa maneira. No fundo, eu achei que aquela mulher era idiota e que alguém devia pô-la na ordem.
Só que, alguns dias depois, a mulher apareceu morta em casa. Embora todos comentassem aquilo sem qualquer emoção duradoura, eu pensei que alguma coisa teria acontecido que lhe tivesse provocado a morte. Ela tinha sido atingida na sua infalibilidade. Há um ponto na razão que comandou a infalibilidade, o direito de julgar e de agir conforme o afeto da justiça. Eu tinha ferido de morte a infalibilidade dessa mulher. Ela viu-se como todos a viam: pobre e inútil, sobretudo, fora da inteligência da culpa. Eu e os outros não a culpávamos. Mas também não a amávamos.
A mulher-objeto, a mulher-demónio, não são senão interpretações da culpa. A mulher não representa maior perigosidade do que o homem, e isso tenta-se demonstrar ao situá-la numa escala inferior, ou numa situação submissa. Mas o que muito se demonstra sofre de falta de convicção.
A mulher conhece-se a si mesma; o homem não. Não é por acaso que o oráculo de Delfos, uma mulher, aconselhe o homem a conhecer-se a si mesmo, o que produziria o estado de culpa. A culpa que não se descreve por meio de qualquer linguagem, é unicamente uma via onde se cruzam a vida e a morte.
Texto inédito escrito entre 1990 e 1993, publicado no jornal “Público” a 15 de outubro de 2011, dia em que Agustina Bessa-Luís completou 89 anos.
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
Cidades de Paixão a Oriente!
A jornalista Paula Moura Pinheiro lançou há pouco tempo um livro muito simpático chamado «Viagem de regresso- Na Rota dos Portugueses em Cracóvia, Moscovo, Sampetersburgo e Novgorod», numa edição do Clube do Autor.É-nos apresentado um capítulo para cada uma das cidades, com as suas referências históricas, as suas vivências, numa escrita fluída e atraente.Vou escrever sobre Cracóvia, como «amuse bouche».Cidade onde estudou Copérnico, nasceram Óscar Schindler e Karol Woytila, entre tantos outros.Cidade de enormes reis e rainhas, do Dragão de Wawel.Foi capital da Polónia anexada em 1939.
Cidade do Gueto Kazimierz

Para Moscovo, uma nota magnífica: a Praça Vermelha alugada para um combate de boxe e o Partido Comunista já sem dinheiro para alugar, no Kremlin, o pavilhão que Khruschev ali tinha mandado construir para os congressos do Partido.
Cidade do Gueto Kazimierz
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Cidade da Basílica de Maria Santíssima
Berço de uma das mais antigas universidades da Europa. Damião de Góis esteve lá, em missão diplomática,em 1529.Cidade de cultura, vida, cor, movimento, arte, riso, vontade de viver, entusiasmo.
e Luísa Todi
Em Novgorod, Ivan, o Grande....
quarta-feira, 5 de outubro de 2011
Apaixonados pelo cinema francês, preparem-se!
Bem, não só temos o Festival de Cinema Francês a decorrer em Lisboa de 6 a 16 de Outubro, como as Amoreiras vão passar a ter uma sala só dedicada ao cinema do país dos saudosos Astérix e Óbelix!
Primeiro, o Festival.Reparte-se entre o Cinema S.Jorge ( bilhetes a 3,50 euros), Cinemateca (bilhetes a 3 euros), Institut Français du Portugal (ex-Instituto Franco-Português, na Av. Luís Bívar, 91, bilhetes a 3, 50 euros).Há ainda o cartão 5 entradas e 10 entradas.
Temos comédias, comédias dramáticas, drama, filmes de animação, comentários.
Dia 11 de Outubro, próxima terça-feira, no São Jorge, «Un Amour de Jeunesse», drama, de Mia Hansen Love, com a presença da realizadora.No mesmo dia , às 19h45, no IFP, o filme «La Petit Jérusalem», de Karim Albou.Até ao fim do mês a festa vai continuar na Cinemateca.
Todos os detalhes em www.festadocinemafrances.com
E agora a sala de cinema dedicada ao cinema francês: abre dia 20 de Outubro, na sala VIP 1 das Amoreiras.Como é da Zon/Lusomundo quem tiver Zon...
Primeiro, o Festival.Reparte-se entre o Cinema S.Jorge ( bilhetes a 3,50 euros), Cinemateca (bilhetes a 3 euros), Institut Français du Portugal (ex-Instituto Franco-Português, na Av. Luís Bívar, 91, bilhetes a 3, 50 euros).Há ainda o cartão 5 entradas e 10 entradas.
Temos comédias, comédias dramáticas, drama, filmes de animação, comentários.
Dia 11 de Outubro, próxima terça-feira, no São Jorge, «Un Amour de Jeunesse», drama, de Mia Hansen Love, com a presença da realizadora.No mesmo dia , às 19h45, no IFP, o filme «La Petit Jérusalem», de Karim Albou.Até ao fim do mês a festa vai continuar na Cinemateca.
Todos os detalhes em www.festadocinemafrances.com
E agora a sala de cinema dedicada ao cinema francês: abre dia 20 de Outubro, na sala VIP 1 das Amoreiras.Como é da Zon/Lusomundo quem tiver Zon...
sexta-feira, 30 de setembro de 2011
Olhar vagabundo
terça-feira, 20 de setembro de 2011
«A máquina de fazer espanhóis»
Não resisto à tentação de escrever sobre este livro e sobre o seu autor, o Valter Hugo Mãe.Este foi o meu primeiro contacto com um livro dele.Já tinha lido algumas crónicas, mas o que verdadeiramente me chamou a atenção foi a entrevista que deu à Judite de Sousa em Agosto último.Claro que o fenómeno Paraty já tinha sido extraordinário e indiciava para mim, que não o conhecia, qualquer coisa de novo.Voltando então à entrevista , fiquei verdadeiramente embasbacada, surpreendida.A humildade esmagadora, a simplidade.Aquele tipo de pessoa existe muito pouco, pensei eu!Família simples, muito grande, muitos afectos, figuras muito presentes e assumidamente importantes, sem rodeios.
E depois, o seu percurso individual, o facto de nunca ter pensado que seria possível alguém como ele, ali de Caxinas, chegar a Paraty ou ao mundo...
E, nesta altura, respirei fundo e pensei que tenho que escrever alguma coisa sobre o único livro que tinha lido do VHM.
Não pretendo escrever qualquer crónica literária nem nada do género:só o que me apetece, o que me vai na alma sobre o livro.
Tinham-me dito que era duro.E trata-se realmente de uma realidade muito dura, o envelhecer.Mas o envelhecer, ali, aparece-nos de formas tão diferentes e tão espantosas.Sem levantar muito a cortina, o lar «feliz idade» vai reunir um conjunto de amigos, mostrando a uns e a outros ( e a nós) que, até à partida, tudo é possível, aqui.Três momentos diferentes do livro:
-a saudade : «...e disse, um dia essa saudade vai ser benigna, a lembrança da sua esposa vai trazer-lhe um sorriso aos lábios porque é isso que a saudade faz, constrói uma memória que já não dói e que lhe traz apenas felicidade, a felicidade de ter partilhado consigo um amor incrível que não pode mais fazê-lo sofrer, apenas levá-lo à glória de o ter vivido, de o ter merecido...».
- a perfeição, imperfeição e finalmente humanidade da nossa personagem, confronta-se com a sua realidade presente e com as idiossincrasias do seu passado: «...Salazar foi como uma visita que recebemos em casa de bom grado, que começou por nos ajudar, mas que depois não quis mais ir-se embora...até que nos tirou das mãos tudo quanto pôde e nos apreciou amaciados pela exaustão...tudo era para que não praticássemos cidadania nenhuma...tudo contribuía para essa cidadania de abstenção.»
E para acabar, Deus:«deus é a cobiça que temos dentro de nós.é um modo de querermos tudo, de não nos bastarmos com o que é garantido e já tão abundante.como se não fosse suficiente tanto quanto se nos põe diante durante a vida.queremos mais, queremos sempre mais, até o que não existe nem vai existir».
Concluo, sem deixar de referir que o livro tem descrições hilariantes, pensadas de forma magistral!É muito,muito bom. A não perder.
E depois, o seu percurso individual, o facto de nunca ter pensado que seria possível alguém como ele, ali de Caxinas, chegar a Paraty ou ao mundo...
E, nesta altura, respirei fundo e pensei que tenho que escrever alguma coisa sobre o único livro que tinha lido do VHM.
Não pretendo escrever qualquer crónica literária nem nada do género:só o que me apetece, o que me vai na alma sobre o livro.
Tinham-me dito que era duro.E trata-se realmente de uma realidade muito dura, o envelhecer.Mas o envelhecer, ali, aparece-nos de formas tão diferentes e tão espantosas.Sem levantar muito a cortina, o lar «feliz idade» vai reunir um conjunto de amigos, mostrando a uns e a outros ( e a nós) que, até à partida, tudo é possível, aqui.Três momentos diferentes do livro:
-a saudade : «...e disse, um dia essa saudade vai ser benigna, a lembrança da sua esposa vai trazer-lhe um sorriso aos lábios porque é isso que a saudade faz, constrói uma memória que já não dói e que lhe traz apenas felicidade, a felicidade de ter partilhado consigo um amor incrível que não pode mais fazê-lo sofrer, apenas levá-lo à glória de o ter vivido, de o ter merecido...».
- a perfeição, imperfeição e finalmente humanidade da nossa personagem, confronta-se com a sua realidade presente e com as idiossincrasias do seu passado: «...Salazar foi como uma visita que recebemos em casa de bom grado, que começou por nos ajudar, mas que depois não quis mais ir-se embora...até que nos tirou das mãos tudo quanto pôde e nos apreciou amaciados pela exaustão...tudo era para que não praticássemos cidadania nenhuma...tudo contribuía para essa cidadania de abstenção.»
E para acabar, Deus:«deus é a cobiça que temos dentro de nós.é um modo de querermos tudo, de não nos bastarmos com o que é garantido e já tão abundante.como se não fosse suficiente tanto quanto se nos põe diante durante a vida.queremos mais, queremos sempre mais, até o que não existe nem vai existir».
Concluo, sem deixar de referir que o livro tem descrições hilariantes, pensadas de forma magistral!É muito,muito bom. A não perder.
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